Paulo Guedes? Ai vou eu!

Marília Sena
3 min readMay 3, 2021

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A fala do ministro Paulo Guedes criticando o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) me incomodou muito. Lendo os jornais, percebo que não foi só a mim, mas a outros bolsistas que mudaram o rumo das suas histórias através da política pública como mostrou o jornal El País.

Sem saber que estava sendo gravado, Guedes disse que o Fies deu bolsas para “todo mundo”, que o programa foi um “desastre” enriquecendo meia dúzia de empresários. Na fala, o ministro da Economia falou que até o filho do porteiro do seu prédio entrou para a universidade zerando a prova.

O ministro expressou muito mal a sua crítica ao esquema de corrupção dentro do programa, e parece não conhecer as regras do Fies: é preciso nota mínima para conseguir uma bolsa de estudos. Mas não é de se estranhar o comentário de um ministro que já demonstrou outras vezes que para ele pobre deve continuar à margem da sociedade.

Eu entrei na universidade pelo Fies. Desde criança sonhava em cursar jornalismo, mas ouvi do meu pai que ele não conseguiria me ajudar, pois o curso era de “rico”. Dono de bar e filho de candango vindo do nordeste, o meu pai não tinha muita perspectiva para a filha pelos estudos. Assim como a minha mãe, também vinda do nordeste e dona de comércio pequeno.

Mas essas barreiras nunca me impediram de correr atrás do meu sonho. Estudei sempre em escola pública com muita dificuldade porque sofro com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Reprovei duas séries na escola porque não entendia as provas. Fora isso, padecia com a situação dentro de casa: um pai alcoólatra e uma mãe sobrecarregada (situação já restaurada).

Tentei entrar na Universidade de Brasília (UnB), mas não deu certo. Logo fui aprovada em uma faculdade de elite de Brasília para cursar Comunicação Social através do Fies. O sonho começou com muita dificuldade. Era caro pagar ônibus todos os dias — eu moro há 32 quilômetros da faculdade, fora a alimentação e a mensalidade que a bolsa do Fies não cobriu.

Pensei em desistir várias vezes, mas tive muito apoio dos meus professores para que isso não acontecesse. Me sentia muito fora da caixinha dos meus colegas de sala. Em uma aula, na frente da turma toda, uma das meninas que estudava comigo, filha de coronel do Exército e moradora da área nobre de Brasília, achou legal comentar que eu estava repetindo a mesma calça durante a semana. Aquilo me magoou muito, lembro de ir chorar no banheiro.

Fora os dias que eu precisava passar o dia inteiro na faculdade e não tinha condições de me alimentar bem. Já precisei deixar de comer para ter a oportunidade de fazer uma entrevista e publicar um texto pela faculdade.

Consegui o meu estágio no quarto semestre do curso. Foi indicação de um professor que acreditou em mim para participar de uma seleção entre outros estudantes de semestres superiores. Era só uma vaga, mas eu consegui. Na época, fui repórter de Economia do Correio Braziliense — a experiência me rendeu a experiência de ser finalista do prêmio MPT de jornalismo em 2018.

Depois fui estagiar na TV Senado, vi outra dificuldade: onde eu ia conseguir roupas para frequentar o Congresso? Mas com muito esforço a minha mãe me ajudou. Lá fiquei 1 ano e 4 meses cobrindo o funcionamento da Casa. Foi um tempo de muito aprendizado que me rendeu outra oportunidade: estagiar no Congresso em Foco, o segundo veículo digital mais lido entre os parlamentares e de muito prestígio no noticiário de política nacional.

Mas a fase de estagiária terminou. Antes de me formar (prestes a apresentar o Trabalho de Conclusão de Curso), e graças ao curso que o Fies está me ajudando a pagar, inicio o mês de março como repórter contratada no site. Um resultado do meu esforço com o apoio dos professores e supervisores de estágio que acreditaram em mim. Obrigada a todos! Prometo não decepcionar. Ofereço isso aos meus pais e avôs que não tiveram a mesma oportunidade.

Paulo Guedes? Ai vou eu!! Nós! Filhos de porteiros, empregadas domésticas, nordestinos e donos de bar!

Sou a neta de um candango que ajudou a construir Brasília. Um de seus trabalhos que mais gosto é a construção da ferragem da sede da Caixa Econômica. Diferente do que diz a música “Cidadão” cantada por Zé Ramalho, lá eu vou poder entrar e olhar. Obrigada, Fies!

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Marília Sena

Atual Congresso em Foco. Apaixonada por Literatura. Meus exs são a TV Senado e o Correio Braziliense . Aqui é pessoal